Você conhece a história da emancipação política do município de Lauro de Freitas? Já parou pra pensar sobre nosso processo civilizatório, desde o território ancestral de Y-Pitanga até a efetiva declaração de emancipação municipal? Ou já refletiu sobre a importância disso para nossa consciência identitária? Aproxima-se mais uma festividade de emancipação e estamos num ano duplamente atípico, tanto por ser ano eleitoral (oportuno para considerar o compromisso com tais aspectos na escolha de nossos próximos representantes do poder legislativo e executivo), quanto pela condição peculiar de enfrentamento à pandemia do COVID -19, que nos impõe desafios em todas as esferas da vida cotidiana, inclusive na forma de celebração da principal data cívica municipal.
A nossa história tem origem muito antiga e, até sermos a atual cidade, passamos pelos tempos da Freguesia de Santo Amaro do Ipitanga e já fomos o distrito de Ipitanga – que pertencia a Salvador. A emancipação municipal ocorreu quando aquele território distrital deixou de pertencer à capital, tornando-se um município independente, emancipado, com autonomia político-administrativo. O distrito de Água Cumprida também se emancipou na mesma época e, para marcar aquele momento histórico, receberam novos nomes, homenageando personalidades notáveis da história baiana. O jornalista Ernesto Simões Filho, fundador do jornal A Tarde, seria homenageado aqui e, para a Água Cumprida, dariam o nome de Lauro de Freitas, mas a família do jornalista sugeriu que seu nome fosse reverenciado lá, pois havia uma relação dele com o lugar e, assim, por mera casualidade, o nome de Lauro de Freitas foi atribuído ao então distrito de Ipitanga.
Em 31 de julho de 1962, recebemos o topônimo (nome próprio de um lugar), em homenagem ao ilustre engenheiro Lauro Farani Pedreira de Freitas, fundador da Cia. Leste Ferroviária. Dr. Lauro, como era conhecido, fora um homem de grande prestígio social. Importante político de sua geração, chegou a candidato ao Governo do Estado da Bahia e tendo, inclusive, falecido em acidente aéreo durante campanha eleitoral, em 11 de setembro de 1950. O seu nome ficou marcado na história como um honrado homem público, de prestígio tal, que o seu sepultamento consta como um dos maiores em participação popular. É notório que Dr. Lauro merecia a homenagem que registrasse seu nome e legado na memória dos baianos, contudo, sua trajetória não tinha sequer relação com essa região e foi, então, justo por isso que o poeta Tude Celestino de Souza, influente personalidade da cultura e sociedade ipitanguense da época, criticou a atribuição do nome de Lauro de Freitas ao novo município. Para o poeta, não era justo silenciar a ancestralidade de Ipitanga e a história de um povo para reverenciar a memória de um indivíduo. Tude considerou uma “homenagem que desomenageia”, já que houve grande rejeição da população ao nome do engenheiro. Essa rejeição ainda tem reflexos na contemporaneidade, ocasionando, por exemplo, que muita gente use o nome de “Lauro” apenas para se referir ao centro da cidade (como se as outras localidades não fizessem parte da mesma unidade municipal).
A adequada percepção histórica e dos processos civilizatórios colabora para a formação do senso crítico, indispensável à compreensão da identidade municipal, permitindo perceber a recusa da comunidade em legitimar o topônimo oficial, como um ato de resistência contra a forma impositiva de silenciar suas pertenças de memória. A violação das identidades deste território, que fora declarado Ipitanga desde tempos imemoriais, ensejou toda a (des)construção do sentido de pertencimento que se verifica em nossa sociedade ainda hoje.
Para conciliar a devida celebração da emancipação municipal com a justa reparação de nossas pertenças de memória e identidade, será importante, sim, difundir a biografia do ilustre cidadão que nos legou o nome oficial, mas, também, devemos garantir às novas gerações uma reflexão histórica verdadeiramente emancipatória. Para honrar Lauro de Freitas e reverenciar a memória de Y-Pitanga.
Por: Tina Tude
Atriz, educadora e ativista pela salvaguarda das pertenças ancestrais da identidade ipitanguense. Membro da Academia de Letras e Artes de Lauro de Freitas – Alalf e titular do segmento de PHIM – Pesquisa Historiográfica, Identidade e Memória do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Lauro de Freitas -CMPCLF.